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terça-feira, 3 de abril de 2012

Millôr

Tenho o hábito saudável de todos os dias passar os olhos pelos jornais, fazer uma prévia leitura em diagonal e depois aprofundar esta ou aquela notícia, um ou outro artigo de opinião ou editorial.

Tenho o hábito pouco saudável de todos os dias passear os olhos pelos jornais, fazer a tal prévia leitura em diagonal e aprofundar apenas certo tipo de notícias ou artigos de opinião. É a nova legislação a facilitar despedimentos para criar emprego (?) – mais silogismos modernos; é o TGV que às vezes anda e outras não anda; é o sobe e desce dos juros da dívida; é o que se vai passando na Grécia e em Espanha ( e nós tão perto, e nós tão perto); é o quotidiano que nos preocupa.

Tal é a ânsia de aborver informação que me ajude a compreender o que se vai passando no país e no mundo – esforço frustrado dado que tenho a crescente sensação que cada vez compreendo menos o presente, e o futuro, esse, vislumbro-o como uma imagem distorcida em espelho de feira -- que deixo escapar coisas importantes pelo filtro da diagonal.

Refiro o caso, por exemplo, da morte há uns dias de Millôr Fernandes. Foi a 27 de Março e só há pouco vi a notícia, pequenina, escondida, esquecida numa qualquer página interior. Tinha 88 anos.

Millôr foi desenhador, dramaturgo, escritor, tradutor, excepcional humorista, mas foi a sua faceta de pensador, a sua capacidade de sintetisar uma imagem numa curta e aparentemente simples frase -- «viver é desenhar sem borracha» -- que mais me atraíu. Recorrer a Millôr quando estou em dia depressivo, chateado com a vida, é um pequeno bálsamo. O seu cinismo travestido de humor envolve-me como uma camada quitinosa e ajuda-me a enfrentar a hostilidade do ambiente corrosivo em que vivemos mergulhados, porque, assegurava ele, «certas coisas só são amargas se a gente as engole», ou então, «olha, entre um pingo e outro, a chuva não molha».

A ironia sarcástica de Millôr abarcava tudo e todos e era, surrepticiamente, um sinónimo da verdade -- «os nossos amigos poderão não saber muitas coisas, mas sabem sempre o que fariam no nosso lugar». Cáustico, terrivelmente mordente, foi, no entanto, um dos idealizadores do “frescobol”, um desporto onde não existe rivalidade, não há vencedores nem vencidos, jogado cooperativamente, onde se cultiva a amizade e o comprometimento nas jogadas -- «se você agir sempre com dignidade, pode não melhorar o mundo, mas uma coisa é certa: haverá na Terra um canalha a menos».

Centenas de frases proverbiais fazem parte do acervo que nos deixou Millôr Fernandes. Quase todas nos fazem rir, todas nos ensinam alguma coisa: «A gente só morre uma vez, mas é para sempre!» e portanto, «não há problema tão grande que não caiba no dia seguinte».

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