À época, o quintal da casa de Belem tinha bastantes mais canteiros do que tem hoje e era por ali, entre algumas flores e muitas ervas, que o Jeremias se anichava.
Tinha sido encontrado por acaso no leito da ribeira que nasce na serra de Grândola e passa, a caminho do mar, a uns cinquenta metros da nossa casa de férias no Alentejo. Escassa de água, que só corre quando chove, na maior parte do ano a ribeira apresenta apenas, aqui e ali, vestígios da humidade residual dos charcos mais persistentes. Era por aí que o Jeremias se arrastava certamente em busca da água vital à sua sobrevivência.
Quem o encontrou foi a Riquelina, a vizinha que vivia e ainda vive a uns trezentos metros da nossa casa. Mulher da terra, dona de uma insensibilidade pouco comum mesmo numa região em que a subsistência exige absoluto pragmatismo no modo de vida, a Riquelina pegou no Jeremias e largou-o no fundo de um bidon vazio que tinha servido, provavelmente, como recipiente de gasóleo para o tractor. Sem comida, sem água, sujeito ao calor concentrado naquele contentor de paredes metálicas, o Jeremias agonizava. Quando ela nos contou a novidade fomos vê-lo. Cientes que se ali ficasse depressa morreria, quisemos trazê-lo para Lisboa ao que a mulher acedeu com um encolher de ombros.
O Jeremias arrebitou e rapidamente se ambientou ao nosso quintal onde vivia camuflado entre as plantas que as minhas filhas tinham o cuidado de manter sempre húmidas de tão regadas. Já não me recordo por que razão é que elas o baptizaram de Jeremias mas, valha a verdade, o nome assentava-lhe que nem uma luva. A dada altura - juro que é verdade - o Jeremias dava pelo nome e vinha ter connosco quando o chamávamos. Estendia a cabeça e - continuo sob juramento - aceitava pacificamente e mastigava deliciado pedacitos de salsicha e de chouriço como se nunca tivesse comido outra coisa na vida. Durante algum tempo o Jeremias foi a mascote da casa.
Um dia, há sempre um dia em que o que não queremos acontece, o Jeremias, talvez tomado por uma súbita ânsia de conhecer outros mundos, rastejou sem que dessemos por isso por baixo do portão do quintal que dá para a rua e desapareceu. Ainda o procuramos longamente, rua abaixo, rua acima, mas para tristeza de todos nunca mais o vimos. Ficou apenas a sua recordação para contar esta história.
Ah! Já me esquecia de dizer a quem não sabe: o Jeremias era um cágado e era tudo menos o que a palavra significaria se não tivesse o assento agudo.
Na realidade foste tu a baptizá-lo. Disseste que era a cara chapada de um tal Jeremias. Beijocas!
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